BLOG DA PASTORA ZENILDA


Pra. Zenilda Reggiani Cintra
As opiniões deste blog refletem a minha visão e não, necessariamente, a de outras pastoras da CBB.
Por favor, ao reproduzir textos deste blog indique o link: http://pastorazenilda.blogspot.com/. Obrigada.

terça-feira, 15 de abril de 2014

ANDRODICÉIA OU A IDEOLOGIA MASCULINA DEFENDIDA POR MULHERES

"O termo androdicéia  representa a assimilação de uma ideia, um discurso, enfim, uma ideologia masculina proclamada e assumida a partir do discurso feminino. Em outras palavras, a mulher assume a defesa do ponto de vista do homem, sem que se perceba uma defensora do ponto de vista a partir desse prisma"

Por João Pedro Gonçalves*


Introdução
            Busquei um termo que me desse a ideia da justificação das coisas e práticas a partir de uma cosmovisão do masculino. O uso que dou ao termo significa a representação do discurso feminino a partir de uma visão do masculino. O termo liga-se ao conceito de ideologia, no sentido negativo ou marxista, ou seja, a ideologia é o ato de encobrir ou de estar encoberto; é a capacidade de se acreditar em uma ideia, defendê-la, abraçar uma visão de mundo sem que se saiba exatamente a origem da mesma. A ideologia encobre dos seus defensores e “crentes” o real significado daquilo que defendem. Para se entender esse tipo de representação do masculino no feminino, precisamos lembrar de dois conceitos básicos: dominação e ideologia.

Os tipos de dominação
            Dominação, segundo Weber, é a “probabilidade de encontrar obediência para ordens específicas dentro de determinado grupo”. O fundamento de toda dominação, começa com uma crença básica: o prestígio do dominador. A dominação pode ser exercida por  costume, afinidade ou afeto para com o dominador, interesse material ou por motivos ideais. Não se descarta a possibilidade de os dominados terem interesses e vantagens na relação com o dominador. Em todos os casos, deve existir alguma vontade em obedecer. Por outro lado, não basta o voluntarismo do dominado; o dominador deve cultivar a crença da legitimidade do seu domínio entre os súditos.
            Para Weber, há três tipos de dominação: Dominação Legal, Tradicional e Carismática. A Dominação legal, é aquela que se exerce em virtude de uma lei, de um estatuto; o senhor é obedecido por causa de uma regra que define quem e em que medida alguém deve ser obedecido. O senhor é colocado em posição de mando segundo uma regra e de acordo com uma competência concreta. Políticos, uma vez eleitos, juízes e militares, dominam por causa da dominação legal.
            A Dominação tradicional, é aquela que se baseia na crença da santidade das ordenações e dos poderes senhoriais de alguém. Esse tipo é mais puramente representada no patriarcalismo. O senhor ordena e os súditos obedecem. A tradição também dita as normas. Dominação carismática, é aquela em que a devoção afetiva à pessoa do senhor e a seus dotes naturais são os critérios predominantes do exercício da sua liderança. Esse poder pode ter sido conquistado por causa do seu poder intelectual ou da sua oratória. Os políticos são continuamente reeleitos por causa do seu carisma. Esta dominação se dá por causa do carisma que se exerce sobre os liderados.

Dominação segundo Bourdieu
            Para Bourdieu, a dominação existe em qualquer nível de relação entre os indivíduos. No seu exercício, as pessoas buscam formas estratégicas que sejam eficazes na criação e manutenção dessa dominação. Essas estratégias, próprias do universo social, são mediatizados por mecanismos objetivos e institucionalizados. A relação entre pessoas, para esse autor, é tratada como economia, porque as estratégias de instauração e manutenção duradoura são custosas em termos de bens materiais, serviço ou tempo.
Um sistema de dominação pode ser sustentado por mecanismos ideológicos, ao se manter escondido ao mesmo tempo em que contribui para a reprodução da ordem social e da permanência da dominação. Às vezes, as pessoas se deixam dominar com um silêncio cúmplice. Quando em uma relação de dominação, os mecanismos objetivos fazem com que os dominadores não tenham necessidade de se servir deles, tanto mais indiretas serão as estratégias objetivamente orientadas em direção à reprodução.
As estratégias de manutenção da dominação podem ser materiais ou simbólicas. No primeiro caso, o senhor domina através de uma dívida impagável ou pela apropriação total de seus bens. A perpetuação da relação dominante depende da habilidade do senhor em manter o servo na posição de subserviência. Outra estratégia da manutenção da relação está na espera de uma fidelidade que é exigida por causa da honra.
Nas relações que existam a dominação simbólica, elas são tão ou mais econômicas que a violência econômica. Quer dizer, dia após dia, é requerido do senhor, que ele dispense cuidados, atenções e mantenha em dia os laços éticos, afetivos e econômicos. Por exemplo, ele faz com que o subalterno participe de alguma maneira dos interesses do senhor. Este trata as coisas daquele como suas, pois o senhor o permite agir e pensar que a coisa é também sua.
            Esse tipo de relação cria dois tipos básicos de dominação, dois meios de segurar, vincular alguém a si: a dádiva ou a dívida. A dívida segura a pessoa abertamente de forma econômica. A dádiva (simbólica, irreconhecível, eufemizada) vincula a pessoa por meios de "obrigações morais e afetivas criadas e mantidas pela troca". As formas generosas da dádiva deixam na incerteza a "lei universal do interesse" e colocam ênfase no próprio ato de fazer, como se na ação estivesse algum tipo de isenção de interesse. O que há, na verdade, é uma negação, ou denegações do interesse.
            A dádiva cria a dívida atrelando o súdito ao senhor. Doa-se para dominar. Uma dádiva cria a obrigação de pagar; não em termos financeiros, mas através do reconhecimento, da gratidão, do respeito, das honrarias, do código de honra, onde se espera do súdito que se mantenha fiel ao senhor. Ao mesmo tempo em que o senhor domina os súditos, ele precisa, além das estratégias que perpetuam o seu domínio, de grande de habilidade para a manutenção da dominação. Uma dessas habilidades se evidencia na dispensa de cuidados; outra, torná-lo sócio do seu negócio para mantê-lo preso ao senhor.

Ideologia
            A ideologia está ligada a processos de inculcação cultural, propagandística. Quem participa de uma cultura tem dificuldade de ver a si mesmo enquanto participante de uma ideologia, ao passo que se torna um expert em descobrir a ideologia do outro. Daí a dificuldade de se ver a si mesmo como um sujeito ideológico. O demônio é sempre o outro.
            É nesse sentido que uso o termo androdicéia, que representa a assimilação de uma ideia, um discurso, enfim, uma ideologia masculina proclamada e assumida a partir do discurso feminino. Em outras palavras, a mulher assume a defesa do ponto de vista do homem, sem que se perceba uma defensora do ponto de vista a partir desse prisma. A mulher fala e raciocina como homem, sem se perceber homem. Enquanto porta-voz da fala masculina, defende sua própria feminilidade.
            A androdicéia é uma forma sutil de dominação masculina, pois a mulher, que discursa a fala do homem, não se percebe masculinizada, nem masculinizante, quer dizer, homologadora e autenticadora do discurso do homem. Para efeito de ilustração do termo, segue-se diversos exemplos desse tipo de chauvinismo machista na cultura brasileira.

Práticas da androdicéia na cultura
            O primeiro exemplo é uma anedota que se conta de um vizinho que, ouvindo a vizinha gritar por socorro, sai em defesa da mulher. Ao chegar, a mulher que antes gritava, se junta ao marido para espancarem, juntos, o vizinho intruso. A seguir, a mulher se volta para o marido e pede que o mesmo continue a lhe bater. Algo semelhante aconteceu alguns tempos atrás com uns vizinhos meus. Os amigos, já um tanto altos por causa da bebida, o marido de uma delas resolveu acertar as contas com a esposa. Ela começou a gritar por socorro. Chamei a polícia. Quando chegaram, o policial gritou a partir do térreo do prédio onde estava o marido que espancava a esposa. Todos os envolvidos – inclusive a espancada - negaram a tentativa de agressão.
            A androdicéia está no imaginário da nossa cultura reforçada pelos filmes e novelas. O protagonista, geralmente homem, aparece como marido de uma megera, caricaturada como rabugenta, velha, feia e ultrapassada. Do outro lado, uma bela moça, inteligente, atenciosa, que representa tudo o que o galã sempre desejou e nunca teve. A ideia é fazer com que os espectadores desejem a separação do casal para que o galã encontre o verdadeiro amor.

Androdicéia religiosa
            Para a análise da versão religiosa, é necessário abrir-se um parêntese para contextualizar o pensamento cristão. O imaginário cristão em todos os níveis – católico, ortodoxo e protestante - sedimentou a crença de que da mulher procede todos os tipos de males da humanidade. Em virtude disso, sempre foram consideradas como uma companhia perigosa, meio diabólica. Na Idade Média, os homens chegaram a persegui-las no tempo da sua menstruação. Não sabendo qualquer coisa da fisiologia feminina, os sábios e teólogos da época afirmavam que a mulher sangrava por causa de um pacto que tinha com o demônio. Da mesma forma, quando engravidavam, era porque tinham sido possuídas de algum espírito maligno. Com isso, por volta do século XIII, mulheres menstruadas ou grávidas tinham que viver escondidas, reclusas ou fora da comunidade. Muitas delas buscaram refúgio nas florestas e cavernas, o que reforçou ainda mais o imaginário masculino da possessão demoníaca das mulheres.
            No dos religiosos, diferentemente das novelas e filmes, um casal com problemas conjugais terá na mulher a busca da origem de toda a infelicidade do homem. Inconscientemente, acusa-se a mulher e se lhe atribui a culpa do mal relacionamento entre os dois. Os mais espirituais vão querer saber o que a esposa fez de errado, se deixou de cumprir com suas obrigações de mulher e esposa, qual o seu pecado. Não é raro também que se busque uma explicação arqueológica para o fato tentando-se achar uma terceira pessoa que, aproveitando-se do fato de o homem estar insatisfeito no casamento por causa da esposa, tenha se aproveitado do homem, que, carente, foi seduzido e engodado pela “outra”.
            Nos dois casos, o homem é praticamente eximido de qualquer tipo de julgamento pelos membros da comunidade religiosa. O mau relacionamento ou é culpa da esposa que não soube cumprir com o papel de esposa, ou atribui-se à “outra” todo o acontecido. Nesses casos, os irmão já estarão previamente comprometidos a tomar o partido e se colocarem numa posição a favor do homem. Mais estranho ainda é que, dificilmente, as mulheres também não tomarão a posição de inocentar o homem e punir a ambas as mulheres: a esposa e a “outra”.
            A partir desse contexto religioso, as mulheres mais novas, viúvas, mães solteiras, separadas ou com problemas conjugais no seus casamentos são inevitavelmente vistas como suspeitas, ameaçadoras, concorrentes, um perigo à vista, inimigas das outras e seus casamentos na comunidade religiosa. É preciso blindar, portanto, os homens, os maridos dessas mulheres. Para tanto, se necessário for, as mulheres que se encontram nessa posição, devem ter o convívio diminuído a praticamente zero, afastadas da comunidade. Como uma ameaça a todo casamento, é necessário eliminar a futura concorrente, mesmo que seja uma concorrência apenas imaginária.
            Ao homem se perdoa os seus deslizes. Até mesmo porque, segundo o imaginário feminino, ele deve ter tido as suas razões. As mulheres não se sentem, em todo esse processo, possuídas do pensamento machista. Mas, no fundo, ao defender os homens contra as espoas, e contra a “outra”, estão reproduzindo a ideologia do homem. Um exemplo clássico é que, quando há separação, ao se buscarem as razões de se ter uma mulher separada no meio da comunidade religiosa, o pressuposto inicial será atribuído a um erro feminino, da esposa.
            Se por acaso um casal de religiosos vir a se separar, espera-se logo que o homem encontre a sua parceira – para não viver uma vida de pecado. Mas a mesma lógica não vale para a mulher. A ela, por todos os argumentos possíveis, e principalmente teológico, se imputará a continuidade da condição de casada, pois a separação do marido sempre será interpretada como temporária. Com isso, obriga-se à mulher manter-se pura, esperar, sem contrair novas núpcias, muito menos namorar. Ela será condenada a viver como uma “viúva de ex-marido vivo”.
            Nas comunidades religiosas, só os homens se separam. A mulher deve permanecer no estado de casada, mesmo estando condenada a morar só pelo resto da vida. Demore o tempo que demorar, ela deve aguardar e orar pela volta do “marido”. Profecias, versículos bíblicos e orações lhes serão oferecidos como promessa e esperança da volta do homem, que continua sendo seu marido. Se os anos demorarem muito e o marido não voltar conforme as profecias, ela ainda será culpada, pois que foi a sua falta de fé ou sua dúvida que não fez com que o marido voltasse.
            Representações sociais, inconsciente coletivo, ideário, imaginário ou seja que termo se dê a isso, as mulheres se pensam a si mesmas, e principalmente pensam as outras pelo pensamento do homem. Já não bastasse a dominação feita diretamente pelo próprio homem, a prática feminina é ainda mais homologante e mumificadora dessa dominação, pois serão elas que cuidarão que a dominação masculina seja imposta e de forma silenciosa e indolor. São as mulheres o principal instrumento do homem para perpetuar a dominação masculina. E, quanto mais religiosa for a mulher, mais tenderá a homologar tal situação.
            As mulheres negam às próprias mulheres o direito de serem mulheres, a possibilidade da liberdade, pois que do homem se espera que ele seja o conquistador, o que pede a mão, o que toma a iniciativa, o que empresta o sobrenome, o que dá o nome ao casal, o que tem direito à vida e à morte da mulher. Ao homem cabe o ganhar mais, ditar as normas, dar a palavra final, negar, denegar. Ele começou; que ele termine a relação, o namoro e o casamento.
            Assim, este mundo é uma geração de homens. Uma cultura de mulheres-homens, que pensam como os homens, que, para serem femininas, precisam defender o pensamento masculino. Mulheres no corpo, mas homens na cabeça; voz feminina, com tom masculino. A mulher é um homem num corpo de mulher. A mulher, para ser aceita no sociedade dos homens, precisa pensar como homem, vigiar e punir as outras mulheres. Nessa condição, a mulher, símbolo da fraqueza, do pecado, do engano, deve sempre ser vigiada, olhada com suspeita, vigiada, não mais pelos homens, mas por outras mulheres.

            A questão ideológica e da dominação denegada, branda, reside no fato de que não são mais os homens os que farão todo esse procedimento de punição social, psicológica e religiosa às mulheres. Eles fazem isso através das próprias mulheres. Nesses casos, não é de admirar que os homens pastores neguem às mesmas a posição e papel das pastoras. As próprias mulheres se encarregarão de fazer o trabalho contra as mulheres pastoras. Elas fazem isso convidando os pastores homens a falarem em seus eventos. 

* Pastor João Pedro Gonçalves Araújo, bacharel em Teologia (FTBB, DF), Bacharel em Filosofia (UnB), Mestre em Ciências da Religião (UMESP), e Doutor em Sociologia (UnB). É professor de Filosofia e Sociologia na Faculdade Evangélica de Brasília e professor de Teologia na FTBB (Brasília). É pastor da Igreja Batista no Lago Sul, Brasília. Veja outro texto do autor A BÍBLIA É MACHISTA?

Nenhum comentário:

Postar um comentário